"Ao
nascer em Olinda se vem à luz" disse. E se fez menino, jovem e poeta à luz
de Olinda. Seu berço e sua musa, cidade-mãe e mulher. Félix Augusto de Athayde
levou-a para sempre na memória.
"Quando
quero Olinda,
não
é lá que eu vou:
busco-a
em mim mesmo,
onde
Olinda sou."
Dizia-me:
"no nordeste o horizonte é uma linha clara, definida", e assim fez
sua poesia: ampla como o mar, o ar e a vida vista da cidade alta de Olinda.
Temática abrangente: a existência, a permanência, o prazer, a resistência.
Poética definida: concretizada, dizia ele. Sem sobras, por que trabalhada, arte
feita com artesania, com ciência e paciência.
À luz
veio num velho casarão de engenho situado à rua do Bonsucesso 262, cidade
antiga. Era 25 de setembro de 1932, era o segundo de sete filhos de Esmeralda,
de quem herdou os sedutores olhos verdes, e de Silvio de Athayde, químico
farmacêutico e dono de boa biblioteca em casa. Tinha o mesmo avô que o futuro imortal
da ABL Austregésilo de Athayde, logo, eram primos. Desde sempre o menino Félix
leu e escreveu. Observava, vivia e apreendia as imagens que apareceriam em sua
obra décadas depois. Viveu temporadas na Caruaru do agreste e na minúscula
Altinho, na entrada do sertão. Mergulho em outras pernambucanidades.
E outras
pernambucanidades vieram: Incentivado por professores no Ginásio Pernambucano,
começou a publicar poemas em 48, portanto com dezesseis anos, no Diário de
Pernambuco (dividindo página com o amigo poeta Olímpio Bonald Neto, com
quem fez também o Olinda Jornal, com Carlos Garcia), depois no Jornal
do Commércio e na revista Região. Era assistemático, lia de tudo,
muito em francês, que era a língua estrangeira mais franca no Recife aquela
época. Não era o que se poderia chamar de um bom aluno, nem tinha vocação
acadêmica. Deixou os estudos sistemáticos no 3º ano ginasial. No fim da
adolescência, entre amizades, a praia e o esporte, começa a freqüentar a roda
literária em Recife, que então fervilhava. Fundou a revista Encontro,
com Carlos Pena Filho, Otávio de Freitas Júnior, Fernando Pessoa Ferreira,
entre outros, e participou do editorial Sagitário, com Carlos Moreira e
Edmir Domingues. Iniciou-se no ofício de jornalista e trabalhou no Jornal do
Commércio de Recife. Discutia literatura e política nos bares, nas
reuniões, nas casas.
Nesta
época, travou importantes amizades que levaria para a vida inteira: Aloísio
Magalhães, artista plástico recém chegado da Europa, arquiteto, designer, e que
seria o principal responsável pelo reconhecimento de Olinda e Ouro Preto como
Patrimônio Histórico Cultural da Humanidade pela Unesco; Evaldo Cabral de Melo,
irmão de João Cabral, que viria a ser diplomata e historiador. Félix terminou
por freqüentar a casa da família Cabral de Melo. Fez-se grande amigo de Eduardo
Portella, que viria a ser ensaísta, editor, ministro da Educação e imortal da
ABL, e que, então, havia retornado da Espanha. Por seu intermédio, foi
contemplado com bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica. E como ele
lembrava: "conheci a Europa antes do Rio de Janeiro".
"Ficou
o Recife, para mim, como o lugar de onde se parte. Espanha foi um
deslumbramento. Sua terra, sua gente, sua literatura curaram-me de fantasias e
fizeram-me compreender que literatura era coisa mais vital que não um jogo de
palavras".
Foi para
a Espanha com bolsa de estudos para jornalismo, porém os cursos institucionais
comprometidos com o franquismo, pouco lhe interessaram e passou a freqüentar
cursos livres, menos ligados ao o pensamento oficial. Assistiu aulas de
estilística e literatura espanhola. A poesia religiosa, mística, que se fazia
naquela Espanha franquista não o interessava. Sentia mais afinidade com os
autores da geração de 98 e da geração de 36: Miguel de Unamundo e Antonio
Machado, Miguel Hernández e Jorge Guillén. Travou contato com Dámaso Alonso,
ensaísta, e Vicente Aleixandre, poeta.
Na
Espanha, tornou-se amigo íntimo de João Cabral. Esta amizade mudou a vida do
jovem Félix. João, doze anos mais velho, já tinha publicado alguns livros e
trabalhava no Itamaraty. Foram seis anos de suma importância: Barcelona, Madri,
Sevilha, Marselha, sempre acompanhando João Cabral. Convívio intenso, leituras,
vivências, discussões literárias. Um retrato dessas conversas pode ser visto no
poema de João Cabral, O Sim Contra o Sim, no livro Serial, onde a
quarta parte é dedicada a Félix de Athayde e compara Cesário Verde e Augusto
dos Anjos. Dividiam a paixão pela literatura espanhola dos séculos XVIII e XIX:
beberam nas mesmas fontes. Félix aprende catalão e provençal, para poder ler os
trovadores medievais e renascentistas. Sempre os relacionou com o cordelista e
o repentista nordestino, dos quais também era admirador e conhecedor.
João
Cabral interessou-se pelo trabalho de Félix de enxugamento da linguagem poética
e aproximou-o de um grupo paulista chamado Noigandres que trilhava veredas do
mesmo caminho. Félix chegou a fazer alguns poemas que "pretendiam ser
concretistas", como ele disse, a ponto de freqüentar a página Invenção que
os irmãos Campos - Augusto e Haroldo - publicavam no Correio Paulistano.
Depois de
um ano em Marselha, onde João Cabral havia sido nomeado cônsul, Félix voltou
para o Brasil. Foi para o Rio. Viu um Brasil que não reconheceu:
desenvolvimentista e miserável. Foi arrebatado pela efervescência política.
Voltou ao jornalismo, nas redações da Última Hora e da Tribuna da
Imprensa e participou do CPC - Centro Popular de Cultura da UNE. Nesta
época, casou-se com Haydée, com quem teve duas filhas, Carolina e Patrícia.
Passou a
escrever trabalhos anônimos para o CPC e fazer uma poesia de militância
política. Participou da publicação Violão de Rua com o poeta Moacyr
Félix, com quem manteve amizade até o fim da vida. "Abandonei o
concretismo por uma espécie de nojo social. Eu era assim naquele tempo. E quase
abandonei de todo a poesia, afincando-se no jornalismo, por necessidade de
sobrevivência e por apreciar sua comunicação mais rápida e ampla."
Nesses
anos, estreitou o convívio com o amigo, também de Pernambuco, Herón de Alencar,
jornalista, e que viria a ser um dos idealizadores da Universidade de Brasília.
Herón era extremamente ligado a Miguel Arraes, governador de Pernambuco.
Formaram uma espécie de embaixada de Arraes no Rio de Janeiro, e Félix
assessorava Arraes em seus discursos. Com o golpe de 64, asilou-se na embaixada
da Argélia, onde dezenas de pessoas esperaram a emissão de salvo-condutos. Foi,
enfim, para a Cidade do México. Lá colaborou na revista semanal Política.
Meses depois, seguia para Havana.
Em Cuba,
junto com Héron de Alencar e o cineasta Iberê Cavalcanti, transmitiu a Fidel
Castro, na Mansão Dupont em Varadero, mensagem de Miguel Arraes para o líder
cubano. Desfrutou da amizade de Nicolas Guillén, que publicou seus poemas na
revista da União Nacional de Escritores e Artistas Cubanos. Ficou por um ano em
Havana. Lá conheceu a cubana Noemi Crossas, com quem teve um filho - Rodolfo.
Seguiu
para a Alemanha Oriental - R.D.A., convidado para um encontro internacional de
escritores em 65. Tencionava viver na Argélia, onde estava Miguel Arraes, mas a
queda do presidente Ben Bella, gerou instabilidade política e Félix ficou mais
alguns meses na Alemanha, onde fez uma tournée por universidades
realizando palestras sobre literatura brasileira e latino-americana, tendo
Iberê Cavalcanti como seu intérprete. Foi também a Praga e Moscou. Finalmente
chegou a Argélia, onde viveu algum tempo.
Voltou
para Cuba onde passou mais uma temporada. Pensava em voltar clandestinamente
para o Brasil, e realizou isso em 68, através da fronteira com o Paraguai, com
passaporte argelino falso, e levando, oculta nas costas, uma arma que Fidel
Castro, pessoalmente, lhe havia dado. Quando eu lhe perguntava que fim levou
esta relíquia, ele dizia "foi para companheiros que necessitavam mais que
eu".
Ficou em
São Paulo clandestino e depois, no Rio, foi voltando à legalidade. Respondeu a
processo no D.O.P.S., mas não chegou a ser preso. Trabalhou no Correio da
Manhã e em O País. Félix nunca entrou para o Partido Comunista, mas
era um simpatizante, contribuía, seguia palavras de ordem. Encontra-se com
Marighela, um dos líderes da guerrilha no Brasil. Mas Félix achava que a
guerrilha foquista, de estilo cubano, não daria certo no país. Fez parte
da rede de solidariedade contra o regime militar. Escondeu pessoas em casa,
ajudou gente a escapar para o exterior, participava de eventos. Escreveu o
livro Pátria Que Me Pariu, porém não conseguiu publicá-lo. Muitos desses
poemas foram incluídos na antologia Poesia Viva I, sob a direção de Moacyr
Félix. Depois, colaborou com a Revista Civilização Brasileira e com a
revista Tempo Brasileiro.
Em 1969,
teve, com a jornalista Tamar de Castro seu último filho: João, nome dado em
homenagem ao poeta João Cabral. Foram morar em São Paulo, onde foi chefe de
reportagem de O Estado de São Paulo. Nesta altura, Félix dominava todas
as fases de elaboração de um jornal: da reportagem ao copidesque, da
diagramação à oficina. Viveu intensamente o mundo jornalístico até próximo da
sua morte. Regressou ao Rio para trabalhar em O Globo, chefiando
diversas editorias, indo depois para o Jornal do Brasil, onde ficou por
16 anos em diversos cargos. A partir de 78, passou a publicar artigos semanais
na página de opinião. Durante todo esse tempo, colaborava e escrevia artigos
regularmente para O Pasquim, onde conviveu com uma turma de
amigos: Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa, entre outros.
Como
personalidade, era um homem energético, ao mesmo tempo romântico e tenso, de
opiniões fortes e de caráter profundamente nordestino, por isso, emocionalmente
fechado. As responsabilidades e a correria dos prazos de fechamento do jornal
contribuíam para esta tensão, que era aliviada com fortes doses de whisky e
dois maços de cigarros diários. Seu organismo não resistiu, e, em 82, aos 50
anos, sofreu enfarte e derrame cerebral, seguido de diabetes. Ficou por semanas
no C.T.I. à beira da morte. Depois, voltou. Vinte quilos mais magro, com o lado
esquerdo paralisado. Uma nova fase na vida. Muitos cuidados, fisioterapias e
dois anos depois, Félix conseguia fazer quase todas as coisas sozinho, e andava
acompanhado de uma bengala, o que lhe dava uma certa aparência de senhor de
engenho nordestino. Mas a máquina de escrever - a cabeça - não parou.
Continuou
seu trabalho no Jornal do Brasil, mas sem a pressão da redação. Fazia
suas notas, escrevia seus artigos, nos dois últimos anos para O Estado de
São Paulo. Dedicou-se mais a literatura, reescreveu poemas antigos e
escreveu novos. Freqüentava regularmente a casa de João Cabral, de quem foi
vizinho durante anos, na Praia do Flamengo. Preparou, durante dez anos, um
estudo sobre João Cabral e sua obra, onde abordava as idéias fixas do poeta, a
partir de entrevistas que Cabral concedeu ao longo dos anos. Na segunda parte
do livro, Félix escreveu ensaios sobre cada livro de João Cabral. Por razões
editoriais, o livro foi dividido e editado em duas partes, ambos em co-edição
da Fundação Biblioteca Nacional com a Editora Nova Fronteira: Idéias Fixas
de João Cabral de Melo Neto, de 1998, e A Viagem ou Itinerário
Intelectual que Fez João Cabral de Melo Neto do Racionalismo ao Materialismo
Dialético, de 2000. Edições póstumas, já que Félix de Athayde faleceu logo
após um segundo derrame, devido a complicações decorrentes da diabetes em 23 de
julho de 1995, em hospital público do Rio de Janeiro.
Em vida
publicou apenas dois livros, em edições independentes e limitadas, que estão
integralmente neste volume de Poemas Reunidos: O Bicho Amoroso,
de 1980, com poemas eróticos, e Aloísio Magalhães Interlocução Félix de
Athayde, de 84, diálogo poético com o amigo que acabara de falecer.
* * *
Fiquei
eu, que vivia com meu pai, com os originais de seus escritos. Papéis, pastas,
fichas, cadernos, anotações. Graças a Eduardo Portella, a quem agradeço
imensamente, tive a oportunidade e o prazer de poder organizar e editar os
livros, o que se mostrou um quebra-cabeça: no caso deste volume, os poemas
estavam dispersos, geralmente em várias versões ao longo de 10, 20, 35 anos, à
máquina, à mão, com correções, rasuras. Os poucos que continham data, são
apresentados com elas. O mesmo ocorre com os títulos. De um modo geral, era
impossível saber qual a definitiva versão dos poemas. Vários não entraram por
razões diversas, como falta de espaço: é o caso do cordel Zé Fominha, O
Homem Que Engoliu Um Navio, com dezoito páginas. Nesse processo de seleção
e revisão fui ajudado de maneira essencial por Cairo de Assis Trindade, poeta e
professor de literatura, e por minha mãe, Tamar, aos quais, aqui, agradeço.
Félix
tinha diversos projetos de livros inacabados, e os poemas migravam de um
projeto para outro, que também variavam de nome. Todos os títulos (e epígrafes)
utilizados neste volume são desses projetos: Viva! A luz de Olinda ele
deixou pronto. Sob o título de Corpo a Corpo, que seria um livro de
poemas eróticos, que englobaria também O Bicho Amoroso, reuni os poemas
eróticos e românticos. Em Ainda Olinda estão outros poemas sobre sua
cidade natal. Em Pátria Que Me Pariu, estão os poemas sociais ou
políticos, quase todos da época da ditadura, embora inclua alguns mais
recentes.
Sob o
título de Excesso, achei de agrupar tudo que não se encaixava nos
capítulos anteriores: os poucos poemas de Comer Cru, são um esboço de
livro; Pequenos Anúncios, seria um capítulo de um apanhado geral que
Félix preparava, que se chamaria, num primeiro momento, Plural, e anos
depois, acrescido de novos poemas, passou a se chamar Tudo Plural. Neles
estão incluídos, também, a produção mais recente. Fragmentos é a
exceção: dei esse título ao que encontrei de frases poéticas ou versos
inacabados, rascunhados ou pinçados de poemas maiores, que, por uma razão ou
por outra, não entraram na seleta. A ordem dos poemas, com exceção dos três
livros que estavam prontos, fiz. As notas explicativas também são de minha
autoria, salvo algumas de Interlocução, que estão especificadas, e são
do poeta.
"Félix de Athayde, Vida e Obra Reunidas", texto de apresentação do livro "Poemas Reunidos de Félix de Athayde, por João de Athayde, 2002.
Maravilhada e sensibilizada com a biografia desse nordestino! O poema "Há Outubros é uma luz de esperança no momento político crucial que o Brasil atravessa.
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